31/05/2013

Higiene das mãos: perda de tempo ou medida salvadora?



Quantas vezes você lava as mãos dentro do hospital? Quanto tempo você dedica a cada higienização? Em quais momentos você deve higienizar as mãos? E em quais situações você deve realizar a assepsia e antissepsia? E qual é, afinal de contas, a diferença entre estes três processos? 

Embora estas perguntas pareçam ser apenas chatice de CCIH, elas dizem respeito a um aspecto muito importante do atendimento médico, considerado pela Organização Mundial da Saúde como medida primária de promoção à saúde. Conforme o Ministério da Saúde,

"A higienização das mãos é reconhecida, mundialmente, como uma medida primária,
 mas muito importante no controle de infecções relacionadas à assistência à saúde. 
Por este motivo, tem sido considerada como um dos pilares da prevenção e controle 
de infecções dentro dos serviços de saúde, incluindo aquelas decorrentes da 
transmissão cruzada de microrganismos multirresistentes."


Apesar da importância da higienização adequada das mãos ter sido postulada já no século XIX pelo médico húngaro Ignaz Semmelweis (1818-1865), a prática das recomendações sobre o tópico ainda é negligenciada por muitos médicos e estudantes de Medicina. Para fixar o tópico, sugerimos o vídeo produzido pelo New England Journal of Medicine:
https://www.youtube.com/watch?v=iJmyp4nyT3U

Veja também:
http://whqlibdoc.who.int/publications/2009/9789241597906_eng.pdf (WHO Guidelines on Hand Hygiene in Health Care)
http://www.anvisa.gov.br/servicosaude/manuais/paciente_hig_maos.pdf (Manual da Anvisa sobre Higienização das mãos)

29/05/2013

Plantão Vazio

O que você pensa sobre a Homeopatia?
 
 
Assista este vídeo e se divirta. Apesar de exagerado, é engraçado!
 
 

27/05/2013

Ig Nobel – Improbable Research

Você conhece o Ig Nobel? Se não, eis uma boa oportunidade!


O prêmio, entregue pela primeira vez em 1991, foi criado pela revista de humor científico Annals of Improbable Research (Anais da Pesquisa Improvável) com o intuito de reconhecer as descobertas e pesquisas científicas mais estranhas do ano. Ao todo são contempladas 10 categorias, dentre elas física, química e medicina.

Anualmente, em cerimônias de gala no Harvard's Sanders Theatre, grandes personalidades do mundo das ciências e, ocasionalmente, verdadeiros laureados com o Prêmio Nobel entregam o respectivo Ig Nobel aos vencedores. Até mesmo o economista Paul Krugman, Nobel em 2008, já deu o ar da graça para homenagear os colegas premiados pelo bem humorado evento.

O nome, pronunciado nas cerimônias de premiação como "aigui-noubél", é um trocadilho com o nome do pomposo Prêmio Nobel e a palavra anglofóna ignoble (lit. ignóbil), que representa algo "não nobre", desprezível.

Eis alguns exemplos de pesquisas “bizarras” que ganharam o prêmio:
1) Willibrord Weijmar Schultz, Pek van Andel, Eduard Mooyaart e Ida Sabelis ganharam o prêmio na área de Medicina em 2000 com a pesquisa "Magnetic Resonance Imaging of Male and Female Genitals During Coitus and Female Sexual Arousal" ("Imagens em ressonância magnética dos Genitais Masculinos e Femininos durante o Coito e Excitação Sexual Feminina") publicada no renomado BMJ.

Este é um vídeo ilustrativo sobre RM durante o coito. As imagens falam por si!



2) Em 2012, os estadunidenses Craig Bennett, Abigail Baird, Michael Miller e George Wolford foram premiados por demonstrar que neurocientistas, usando instrumentos complicados e estatísticas simples, podem verificar atividade cerebral significativa em qualquer lugar - mesmo em um salmão morto.


Dentre os presentes, nessa última cerimônia, estiveram o químico Dudley Herschbach (Prêmio Nobel em 1986), o economista Eric Maskin (2007) e o físico Roy Glauber (2005).

Os vencedores do Ig Nobel 2013 serão anunciados e premiados na noite de quinta-feira, 12 de setembro de 2013. Os ingressos para a cerimônia estarão à venda em julho.

Para finalizar, como última curiosidade, desde 1996 a cerimônia conta com uma mini-ópera. Veja!



“Research that makes people LAUGH and then THINK!”
(Pesquisas que fazem as pessoas rirem e depois pensarem!)



MEDICINE: Willibrord Weijmar Schultz, Pek van Andel, and Eduard Mooyaart of Groningen, The Netherlands, and Ida Sabelis of Amsterdam, for their illuminating report, "Magnetic Resonance Imaging of Male and Female Genitals During Coitus and Female Sexual Arousal." [Published in British Medical Journal, vol. 319, 1999, pp 1596-1600.]

NEUROSCIENCE PRIZE: Craig Bennett, Abigail Baird, Michael Miller, and George Wolford [USA], for demonstrating that brain researchers, by using complicated instruments and simple statistics, can see meaningful brain activity anywhere - even in a dead salmon.
REFERENCE: "Neural correlates of interspecies perspective taking in the post-mortem Atlantic Salmon: An argument for multiple comparisons correction," Craig M. Bennett, Abigail A. Baird, Michael B. Miller, and George L. Wolford, poster, 15th Annual Meeting of the Organization for Human Brain Mapping, San Francisco, CA, June 2009.
REFERENCE: "Neural Correlates of Interspecies Perspective Taking in the Post-Mortem Atlantic Salmon: An Argument For Multiple Comparisons Correction," Craig M. Bennett, Abigail A. Baird, Michael B. Miller, and George L. Wolford, Journal of Serendipitous and Unexpected Results, vol. 1, no. 1, 2010, pp. 1-5.

22/05/2013

Quanto Mais Melhor?



O debate acerca da entrada de médicos estrangeiros e de brasileiros formados em escolas de outros países sem a devida revalidação de seus títulos é polêmico. Essa discussão, a depender do interesse do orador, perpassa outras sobre educação médica e, em última análise, assistência à saúde.

É inegável que falta médicos em regiões periféricas e mais distantes do Brasil. Aliás, esse problema é bem conhecido pela população e, claro, pela classe médica. Assim, com uma quantidade maior de médicos resolveremos esse problema, certo? Provavelmente não!

Aprofundando o debate, é preciso dizer que a recomendação da OMS de um médico para cada mil habitantes é uma falácia. Essa recomendação, de acordo com Ademir Lopes Junior, não está escrita em nenhum documento oficial, nem há explicações de quais seriam as bases para ela. Logo, como não temos recomendações universais, o que nos resta são comparações.

Nesse sentido, é interessante citar parte do texto do Dr. Roberto Luiz d’Avila, o qual diz:

“ Os defensores da importação dos médicos estrangeiros adoram comparar a razão brasileira de médicos por habitante (atualmente na casa de 2/1000) com os números de outros países. Dizem que precisamos atingir os indicadores da Suécia (3,73), França (3,28), Alemanha (3,64), Espanha (3,71), Reino Unido (2,64) e Argentina (3,16).
É estratégico esquecerem-se de mencionar que o Governo dessas Nações (com sistemas de saúde semelhantes ao SUS) investem mais do que o Brasil. Na Inglaterra, a participação do Estado no gasto nacional em saúde chega a 84%. Na Suécia, França, Alemanha e Espanha, oscila de 74% a 81%. Nos vizinhos argentinos, este percentual é de 66%. No Brasil, fica em 44%.”

Também é interessante mencionar que, se por um lado o Governo enfoca suas ações de saúde básica em equipes multiprofissionais, nas quais há uma interdependência; por outro lado, Ele responsabiliza o médico pela saúde. Logo, pergunto-lhes, falta apenas médicos nas regiões de difícil provimento? A infraestrutura (hospitais, UABSFs etc) existe? A equipe multiprofissional está completa, a exceção do médico? Nas palavras do Deputado Federal Ronaldo Caiado, “querem penalizar o médico sem falar em uma política de interiorização para garantir a inserção profissional”.

Aproveitando as palavras do Deputado, que é médico ortopedista, pergunto-lhes: Por que o Governo não fornece condições ao médico para se fixar no interior? Por que o Governo não cria uma Carreira de Estado para os médicos do SUS?

Além disso, há aqueles que defendem a entrada “provisória” e restrita à assistência básica em áreas de difícil provimento. Entretanto, é necessário mencionar que isso já foi testado na Bolívia e não deu certo, é uma agressão aos direitos individuais e, ainda por cima, configura “pseudomedicina”! Pois, tratar a população de maneira desigual é sinal de desconsideração e de desrespeito para com a cidadania.

Antes de finalizar, gostaria que assistissem os vídeos abaixo, um contra e outro da favor a "importação" de médicos. Os vídeos dispensam comentários!




Enfim, gostaria de pedir desculpas aos Dilmistas e aos defensores da “importação” irresponsável de cubanos, bolivianos, paraguaios. Pois, parece-me absurdo a ideia que resolveremos nossos problemas de assistência médica com medidas imediatistas e midiáticas, pra não dizer eleitoreiras, como essa!


O velho e corriqueiro princípio do “quanto mais melhor”, sem sombras de dúvidas, está enraizado em nossas mentes!


12/05/2013

A Paixão Transformada: história da Medicina na Literatura - Moacyr Scliar



"A história da medicina é uma história de vozes. As vozes misteriosas do corpo: o sopro, o sibilo, o borborigmo, a crepitação, o estridor. As vozes inarticuladas do paciente: o gemido, o grito, o estertor. As vozes articuladas do paciente: a queixa, o relato da doença, as perguntas inquietas. A voz articulada do médico: a anamnese, o diagnóstico, o prognóstico. Vozes que falam da doença, vozes calmas, vozes ansiosas, vozes curiosas, vozes sábias, vozes resignadas, vozes revoltadas. Vozes que se querem perpetuar: palavras escritas em argila, em pergaminho, em papel, no prontuário, na revista, no livro, na tela do computador. Vozerio, corrente ininterrupta de vozes que flui desde tempos imemoriais, e que continuará fluindo."

São precisamente estas vozes perpetuadas na escrita que o escritor brasileiro Moacyr Scliar (1937-2011) retrata em seu livro A Paixão Transformada: história da Medicina na Literatura (1996). Médico sanitarista, Scliar constrói um panorama da história da Medicina a partir do que diversos escritores, médicos ou não, escreveram a seu respeito ao longo da história. Sua seleção engloba desde citações de textos milenares como o Nei-ching e o Susruta  Samhita, passando por diversas fases da literatura mundial, com autores como Montaigne, Molière, Flaubert e Machado de Assis, até escritores mais contemporâneos, como Herman Hesse, Carlos Drummond de Andrade e Sylvia Plath; sem deixar de fora, é claro, grandes nomes da Medicina, como Harvey, Hunter, Semmelweiss, Koch e Chagas.

Clínica Agnew (1889). Thomas Eakin (1844-1916). Óleo sobre tela, 214x300 cm. Philadelphia Museum of Art (Philadelphia)

Ao abordar a fecunda relação entre literatura e Medicina, Scliar nos apresenta não somente diversos médicos-escritores, como Rabelais, Tchekhov e Conan Doyle, ou autores médicos, como Hipócrates, Rhazes, Ramazzini, Snow e Gaunt, mas também o que diversos escritores leigos, por assim dizer, falaram sobre a doença e a prática médica. Dessa forma, o autor traça mais do que apenas um esboço de história da Medicina, nos permitindo vislumbrar a enfermidade em seu contexto histórico. Conhecemos a peste bubônica com Boccaccio e Defoe, a sífilis com Francastoro, o cólera com García Márquez, a doença terminal com Tolstoi.  

Brasileiro, médico e escritor prolífico, Scliar pode ser incluído entre os melhores escritores recentes da língua portuguesa, o que pode ser demonstrado, neste livro, por sua habilidade em selecionar e comentar citações tão expressivas sobre o adoecimento e a arte de curar. A Paixão Transformada é uma oportunidade única para ampliar nossos horizontes sobre a Medicina ao mergulhar na corrente ininterrupta de vozes que compõe sua história.


  
"Os sintomas da doença nada mais são que uma disfarçada
manifestação do poder do amor, toda doença é  apenas
paixão transformada"

Thomas Mann (1875-1955) - A montanha mágica (1924)

11/05/2013

Lesões por causas externas e seu impacto


De forma abrangente, a definição de lesões por causas externas engloba tanto dano físico causado por transferência aguda de energia ou pela ausência aguda de calor e oxigênio bem como dano que resulte em prejuízo psicológico, mal desenvolvimento ou síndrome carencial. Embora as lesões correspondam a um importante problema de saúde pública, estando entre as principais causas de mortalidade e morbidade ao redor do mundo, o tema é comumente esquecido pelos currículos das escolas médicas e pelas pesquisas em saúde.  

Para termos uma ideia da dimensão do problema, segundo revisão recentemente publicada no New England Journal of Medicine (Norton R e Kobusingye OInjuriesN Engl J Med 2013  - ver link abaixo), o número total de mortes em 2010 por lesões por causas externas foi maior que o número de mortes por HIV/AIDS, tuberculose e malária somadas, sendo atribuíveis a lesões cerca de 1 em cada 10 mortes no mundo. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, o impacto das causas externas na morbimortalidade é maior que nos países desenvolvidos, sendo que 89% do total de mortes se deve a lesões por causas externas nos primeiros contra 84% nos últimos.

De acordo com o Ministério da Saúde, apenas nos meses de janeiro e fevereiro deste ano, 151.283 internações decorreram de lesões por causas externas, o que demonstra o enorme impacto destas sobre o Sistema de Saúde. Ainda segundo o serviço de informações em saúde do Ministério da Saúde, as lesões externas causaram 143.256 óbitos no país em 2007 (ano mais recente com dados publicados), com a seguinte distribuição: 


Fonte: Reichenheim ME et al. Violência e lesões no Brasil: efeitos, avanços alcançados e 
desafios futuros. The Lancet. Publicado online em: 9 de maio de 2011


É interessante notar que, em nosso país, a proporção de óbitos por homicídios supera a de mortes relacionadas ao trânsito, o que se opõe à tendência mundial segundo a revisão do NEJM, em que a violência interpessoal responde por 9% das mortes relacionadas a causas externas contra 27.5% causados por acidentes de trânsito . 

Tendo em vista o impacto social e econômico das lesões e de suas diferentes causas, deveria ser preocupação central na formação médica o treinamento dos futuros profissionais não somente para atender a emergências e traumas, mas também para atuar na prevenção destas condições. Infelizmente, a falha das escolas médicas ainda é enorme em ambos aspectos. Os temas de Medicina de Emergência e Traumatologia são pouco abordados  nos currículos, e quando o são, geralmente estão dissociados de vivência prática, sendo comum que muitos médicos sejam formados sem o conhecimento básico para atender situações emergenciais, principalmente relacionadas a causas externas. 

Aprenda mais sobre a dimensão das lesões de causas externas em:
http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMra1109343?query=featured_home
http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazil/brazilpor5.pdf

07/05/2013

Atualização em Tuberculose


Uma das mais antigas doenças infecciosas documentadas, a tuberculose permanece como importante agravo de saúde pública por sua magnitude, transcendência e vulnerabilidade. A infecção pelo Mycobacterium tuberculosis, cujas evidências já foram identificadas em ossos humanos do Neolítico, acompanha o homem ao longo de sua história. Com muitos nomes e diferentes interpretações, os sintomas da doença já foram descritos por culturas diversas ao redor do mundo, recebendo denominações geralmente associadas ao seu aspecto consumptivo, como phthisis entre os gregos e consumptione entre os romanos


Devido ao polimorfismo de suas manifestações clínicas, a tuberculose só foi caracterizada como doença única a partir da segunda metade do século XIX e, apenas no final deste mesmo século, seu agente causador foi identificado por Robert Koch, que recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1905 por sua descoberta. Embora a tísica tenha entrado para o mundo das artes em vários momentos, especialmente durante o Romantismo, e a ela tenham sido atribuídas muitas vítimas famosas, como o imperador D. Pedro I, o compositor Frederic Chopin e diversos escritores, como Álvares de Azevedo, Castro Alves, Emile Brontë e Anton Tchecov, ela sempre constituiu uma doença associada à pobreza e à falta de condições mínimas de higiene e qualidade de vida.


Ainda hoje, a doença possui uma incidência consideravelmente maior entre as populações pobres tanto nos países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. E, apesar de comumente associada com a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), a tuberculose no Brasil também é um agravo importante entre imunocompetentes, sendo que nosso país ocupa a 17º posição entre os 22 países responsáveis por 80% dos casos de tuberculose no mundo.  Vale lembrar que devido ao caráter endêmico da infecção no Brasil, o Ministério da Saúde não considera a tuberculose como doença definidora de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), ao contrário dos países desenvolvidos.

Embora já existam recursos suficientes para seu controle, principalmente a disponibilidade de  um tratamento eficaz e barato, a eliminação da doença como problema de saúde pública não é uma perspectiva em um futuro próprio. Isto faz com que seu diagnóstico e manejo sejam importantes conhecimentos a serem adquiridos pelos profissionais de saúde. Neste sentido, recomendamos a leitura dos textos:


http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/manual_de_recomendacoes_tb.pdf (Manual do Ministério da Saúde para controle da tuberculose, que contém as diretrizes nacionais para seu diagnóstico e tratamento)


http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMra1200894 (Revisão recente do New England Journal of Medicine com dados epidemiológicos atualizados e novas perspectivas)



Ciência e Caridade (1897). Pablo Picasso (1881-1973). Óleo sobre tela, 197 x 249 cm. Museu Picasso (Barcelona). 

Veja ainda alguns exemplos da relação entre tuberculose e arte em:

05/05/2013

Ein Landarzt (Um Médico Rural) - Franz Kafka


"Prescrever é fácil, difícil é conseguir a compreensão das pessoas"
Franz Kafka

Exercer a Medicina em áreas afastadas dos grandes centros não é uma tarefa fácil. Além da falta de infraestrutura, de recursos diagnósticos e de possibilidades terapêuticas, o próprio fator humano, representado pela relação do médico com a comunidade, pode ser uma dificuldade. Devido ao grande status social ainda desfrutado pelo médico no interior, expectativas irreais quanto à ação médica podem ser estabelecidas e demandas excessivas podem ser criadas, forçando o profissional a se desdobrar para corresponder à imagem imposta. Algumas vezes, até mesmo consumindo sua vida pessoal neste esforço.

Tão interessante e profundo é este aspecto da realidade médica que as dificuldades de um médico do interior chegaram a ser retratadas em um conto de 1919 do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), intitulado Ein Landarzt, que pode ser traduzido como Médico Rural ou Médico de Aldeia. Considerado um dos maiores escritores de ficção do século XX, Kafka narra neste conto uma série surreal de eventos que envolve um médico de uma aldeia rural.

Pressionado pela necessidade de atender a uma emergência noturna e sem cavalos para o conduzir, o médico acaba pagando um preço maior do que poderia para conseguir visitar seu paciente. Nas palavras do personagem  título, que também é o narrador: "Eu era o único médico e cumpria minha função até o máximo, quase até os limites do possível".

Embora a prosa de Kafka seja caracteristicamente repleta de imagens e passível de múltiplas interpretações, este conto pode ter um significado especial para os herdeiros de Hipócrates. Afinal, quem, em um plantão noturno, já não se identificou com o narrador em: "Mais uma vez, tinha sido chamado sem necessidade, coisa a que já estava habituado, pois todo o distrito me fazia a vida num inferno com chamadas noturnas".

Por outro lado, qual praticante da medicina nunca teve de lidar com as esperanças irrealizáveis dos pacientes, como nosso personagem em: "Esperam sempre impossíveis do médico. Abandonaram as antigas crenças: o padre vai para a casa e livre-se das vestes, uma a uma; o médico, esse, consideram-no onipotente, com sua misericordiosa mão de cirurgião".

Apesar de provavelmente não ter sido seu intento original, Kafka, em seu esforço em perscrutar a alma humana, constrói uma história que pode promover reflexões interessantes sobre a prática médica, mostrando que a boa literatura sempre tem algo a nos dizer se prestarmos suficiente atenção. "Não sou eu, porém, que vou reformar o mundo".


Leia o conto na íntegra em: http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/b43.pdf


Animação de Koji Yamamura sobre o conto (Kafuka: Inasha Ika), em japonês com legendas em inglês: https://www.youtube.com/watch?v=ZDjmW-gIsKs